terça-feira, 3 de março de 2020

PONTE DE PEDRA - Não era tarde


              Relembrando o colapso da cabeceira da Ponte de Pedra em janeiro de 2010, o arquiteto Osni Schroeder, coordenador da recuperação, escreveu o texto abaixo dando vida ao antigo monumento:




NÃO ERA TARDE

Era uma madrugada difícil para a velha ponte, acompanhada pela lua,
de alguns pássaros da noite e pelo rio que corria mansinho lá embaixo.
Ela revisava sua vida, esperando que alguém viesse salvá-la!
  
Cachoeira sabia que águas violentas já soltavam suas pedras,
levando-as embora mas não se importava muito.

Então, para dar-lhe um choque, numa enchente das grandes,
ela mandou uma das suas cabeceiras se atirar no rio!

A pobrezinha relutou! Não queria abandoná-la!
Mas obedeceu contrariada, e se atirou pesadamente na água.

Quando a viu afundar entre ondas e respingos, a velha ponte
arrependeu-se do que fizera, arrepiada com o silêncio que veio depois.
 
E ficou então ali, esquecida e ferida, temendo a próxima
enchente que poderia lhe ser fatal.

Ninguém sabia, mas ela já havia sido uma imensa
pedra viajante pelo espaço que caiu nos campos em volta,
espalhada em mil pedaços, mas íntegra na
individualidade da sua alma.

Um dia uma gente veio de Cachoeira, juntou suas muitas
partes, desbastou suas asperezas e a empilhou perto do rio,
deixando-a ali por muito tempo!

Sua diversão era cuidar o rio que via lá embaixo por uma
clareira aberta no mato, deslizando mansamente entre areias
e pedras.
Ele sabia-se observado e gostava muito
daquele intenso interesse.
Ela já sabia que o amava!

Uma vez ela viu uma enchente chegar forte e o rio
correndo furioso pelo campo.
Só que onde ela estava empilhada ele chegou mansinho,
ficando dias acariciando suas pedras com molhados carinhos,
ao ponto dela, distraída com seus afagos, somente ter
se dado conta que ele ia embora, quando já descia o barranco.

Num verão, viu que começaram a montar suas pedras em
blocos no barranco e no rio, juntando-as com uma mistura
molhada de areia e cal, que gostosamente gelada
no início unia tudo rigidamente quando secava.

Transformaram-na numa ponte de pedra com três vãos
em arco e cabeceiras alongadas para as margens.
Ela alegrou-se porque ligaria Cachoeira e Rio Pardo,
e ficaria para sempre junto do seu rio!

Sua primeira emoção como ponte foi quando ouviu o grito de
tropeiros e o resfolegar do gado no mato, quebrando galhos
no caminho estreito entre as árvores. Ela tremeu com a
rudeza dos cascos dos animais nas suas pedras, e teve
que sacudir-se toda para se recompor, depois que passaram.

Ela viu passar muita gente importante, como o
Antonio Vicente dos Farroupilhas!
Viu passar escravos de olhar envergonhado, viu gente
indo embora para a cidade iludida pelas suas luzes e
facilidades, viu também famílias acampadas no mato e seus
serões noturnos cheios de cantorias de amor à terra e até a ela.

Sua relação com o rio ia bem! 
Em noites enluaradas, ele vinha todo romântico e ela se 
deixava seduzir pelo suave toque das suas águas.
Mas como em jogos do amor, por vezes ele lhe despejava
águas fortes, contrariado porque diziam que fora domado por ela.
Ele não conseguia admitir que a amava!
. 
Em tempos de pouco movimento ela se esticava toda
para ver se avistava sinais do casario
de Cachoeira ou ao menos as torres da Matriz!   
Sem sucesso, tentava pelo menos ouvir alguns dos seus sons. 
Mas nada! Cachoeira era escondida e silenciosa demais!


Distraída nas lembranças da sua vida, a velha ponte
nem notou que o dia chegara trazido pelo sol, mandando
embora a lua e os pássaros da noite.
O rio, meio assustado, corria fininho no seu leito.

Cansada, ela decidiu dormir um pouco!
Se tivesse sorte, sonharia acordar com uma boa realidade.

Por isto não notou, que lá pelo final da manhã,
uma camionete apontou no alto da coxilha,
vinda dos lados de Cachoeira, movimentando-se lentamente
e vencendo um a um os buracos da estrada.
Seus passageiros viajavam em silêncio!
Procuravam até nem se olhar!

Temiam que os estragos que a última enchente fizera na 
Ponte de Pedra, fossem maiores ainda do que o jornal noticiara.
E que talvez fosse tarde demais para salvá-la!

Felizmente, não era tarde!         



OSNI   SCHROEDER





Foto:  Renato Thomsen



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