Relembrando o colapso da cabeceira da Ponte de Pedra em janeiro de 2010, o arquiteto Osni Schroeder, coordenador da recuperação, escreveu o texto abaixo dando vida ao antigo monumento:
NÃO ERA
TARDE
Era uma madrugada
difícil para a velha ponte, acompanhada pela lua,
de alguns pássaros da noite e
pelo rio que corria mansinho lá embaixo.
Ela revisava sua vida, esperando
que alguém viesse salvá-la!
Cachoeira sabia que águas violentas já soltavam
suas pedras,
levando-as embora mas não se importava muito.
Então, para dar-lhe um
choque, numa enchente das grandes,
ela mandou uma das suas cabeceiras se atirar
no rio!
A pobrezinha relutou! Não
queria abandoná-la!
Mas obedeceu
contrariada, e se atirou pesadamente na água.
Quando a viu afundar entre
ondas e respingos, a velha ponte
arrependeu-se do que fizera, arrepiada com o
silêncio que veio depois.
E ficou então ali, esquecida
e ferida, temendo a próxima
enchente que poderia lhe ser fatal.
Ninguém sabia, mas ela já
havia sido uma imensa
pedra viajante pelo espaço que caiu nos campos em volta,
espalhada
em mil pedaços, mas íntegra na
individualidade da sua alma.
Um dia uma gente veio
de Cachoeira, juntou suas muitas
partes, desbastou suas asperezas e a empilhou
perto do rio,
deixando-a ali por muito tempo!
Sua diversão era cuidar
o rio que via lá embaixo por uma
clareira aberta no mato, deslizando mansamente
entre areias
e pedras.
Ele sabia-se observado
e gostava muito
daquele intenso interesse.
Ela já sabia que o
amava!
Uma vez ela viu uma
enchente chegar forte e o rio
correndo furioso pelo campo.
Só que
onde ela estava empilhada ele chegou mansinho,
ficando dias acariciando suas
pedras com molhados carinhos,
ao ponto dela, distraída com seus afagos, somente
ter
se dado conta que ele ia embora, quando já descia o barranco.
Num verão, viu que começaram
a montar suas pedras em
blocos no barranco e no rio, juntando-as com uma
mistura
molhada de areia e cal, que gostosamente gelada
no início unia tudo
rigidamente quando secava.
Transformaram-na numa
ponte de pedra com três vãos
em arco e cabeceiras alongadas para as margens.
Ela alegrou-se porque ligaria Cachoeira e Rio
Pardo,
e ficaria para sempre junto do seu rio!
Sua primeira emoção
como ponte foi quando ouviu o grito de
tropeiros e o resfolegar do gado no
mato, quebrando galhos
no caminho estreito entre as árvores. Ela tremeu com a
rudeza
dos cascos dos animais nas suas pedras, e teve
que sacudir-se toda para se
recompor, depois que passaram.
Ela viu passar muita gente
importante, como o
Antonio Vicente dos Farroupilhas!
Viu passar escravos de
olhar envergonhado, viu gente
indo embora para a cidade iludida pelas suas
luzes e
facilidades, viu também famílias acampadas no mato e seus
serões noturnos
cheios de cantorias de amor à terra e até a ela.
Sua relação com o rio ia
bem!
Em noites enluaradas, ele
vinha todo romântico e ela se
deixava seduzir pelo suave toque das suas águas.
Mas como em jogos do
amor, por vezes ele lhe despejava
águas fortes, contrariado porque diziam que
fora domado por ela.
Ele não conseguia
admitir que a amava!
.
Em tempos de pouco
movimento ela se esticava toda
para ver se avistava sinais do casario
de
Cachoeira ou ao menos as torres da Matriz!
Sem sucesso, tentava pelo
menos ouvir alguns dos seus sons.
Mas nada! Cachoeira era
escondida e silenciosa demais!
Distraída nas lembranças da sua vida, a velha ponte
nem notou que o dia chegara trazido pelo sol, mandando
embora a lua e os
pássaros da noite.
O rio, meio assustado, corria fininho no seu
leito.
Cansada, ela decidiu dormir um pouco!
Se tivesse sorte, sonharia acordar com uma boa
realidade.
Por isto não notou, que lá pelo final da manhã,
uma camionete apontou no alto da coxilha,
vinda dos lados de Cachoeira,
movimentando-se lentamente
e vencendo um a um os buracos da estrada.
Seus passageiros viajavam em silêncio!
Procuravam até nem se olhar!
Temiam que os estragos que a última enchente
fizera na
Ponte de Pedra, fossem maiores ainda do que o jornal noticiara.
E que talvez fosse tarde demais para salvá-la!
Felizmente, não era tarde!
OSNI
SCHROEDER
Foto: Renato Thomsen |
Sensacional!
ResponderExcluir